sábado, 31 de dezembro de 2011

A capoeira escrava e outras tradições rebeldes


A capoeira escrava e outras tradições rebeldes Ao estudar a prática dos negros, historiador encontra aspectos desconhecidos das relações entre escravos, senhores e Estado ÁLVARO KASSAB O historiador carioca Carlos Eugênio Líbano Soares não tem dúvidas: a capoeira nasceu na América, apesar de articulada por elementos comuns na cultura africana – entre eles a dança e a língua – e é uma resposta dos escravos a um novo ambiente urbano, que começou a ser formado no início do século 18. A tese está no livro “A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850)”, publicado pela Editora da Unicamp. Soares vasculhou arquivos em Portugal, Angola e no Brasil para fundamentar sua obra. Não foi a primeira incursão do pesquisador pelo tema. Em “A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial, 1850-1890” (Editora Access), livro premiado pelo Arquivo Municipal do Rio de Janeiro e sua dissertação de mestrado defendida na Unicamp em 1993, Soares promove uma leitura inédita da capoeira, ancorada na literatura e numa vasta documentação política e policial. Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, por exemplo, foram fontes de pesquisa. A obra de Plácido de Abreu, escritor português pouco conhecido na chamada época de ouro da literatura (final do século 19 e começo do 20), foi da mesma forma objeto de análise. Abreu foi capoeira, assim como muitos imigrantes de várias nacio-nalidades na época. Depois acabou denunciando-a como algo marginal e perigoso. Em geral, lembra o pesquisador, a capoeira era estudada como tema antropológico. “Falava-se muita bobagem da mais importante manifestação de rua do século 19 no Brasil”, testemunha Soares, que privilegiou a abordagem historiográfica da capoeira ligada à escravidão, sua área de pesquisa na Unicamp. A inserção do tema numa perspectiva histórica fez surgir até uma linha de estudo que vem conquistando adeptos, além de revelar aspectos até então desconhecidos. Um deles, abordado em “A negregada...”, revela as ligações políticas dos escravos com a elite, sobretudo após a Guerra do Paraguai, que foi um divisor de águas na segunda metade do século 19. Os capoeiras eram uma espécie de esteio eleitoral de um grupo do Partido Conservador, que acreditava na negociação política do fim da escravidão. Conhecido como Grupo do Visconde do Rio Branco, seus integrantes promoveram a Lei do Ventre Livre e, depois, a Lei Áurea. Nesse contexto de apoio eleitoral, os capoeiras atacavam os membros do Partido Liberal e do Partido Republicano, garantindo a vitória dos conservadores nas urnas. “Não era o capanguismo clássico do meio rural, havia uma troca de favores”, diz Soares, que manteve em “A capoeira escrava” a mesma linha investigativa e de rigor na pesquisa de seu primeiro livro. A seguir, trechos da entrevista concedida pelo historiador. Jornal da Unicamp – O que levou o senhor a voltar à primeira metade do século 19, depois de abordar um período posterior em seu primeiro livro? Carlos Soares – Há todo um debate envolvendo a origem da capoeira, de onde ela veio etc. Fala-se muita bobagem, muita asneira. Como a capoeira do século 19 passou por um período fortemente escravista, com uma população africana muito grande, meu objetivo era palmilhar essa coisa da origem. Mas sabendo que a origem não está no século 19, e sim no século 18. Está nos primórdios da sociedade urbana. A capoeira é um fenômeno urbano, que anuncia uma leitura de negros africanos e crioulos para o mundo urbano colonial. P – O senhor poderia precisar quando a capoeira surgiu? R – Você tem, a partir do início do século 18, a formação de uma sociedade urbana colonial pela primeira vez, em Minas e no Rio de Janeiro. A grande cidade do ciclo do ouro era o Rio de Janeiro, para onde convergiam todas as remessas de ouro que iam para a corte. A cidade cresceu muito, tanto que virou capital da colônia. Houve ali uma espécie de revolução urbana durante o século 18, que com certeza trouxe os africanos, já que até 1700 a população escrava no Rio era quase toda indígena. P - O senhor cita, em seu livro, a união entre grupos diferentes de capoeiras. Como vê a chamada organização de rua dentro desse contexto? R – De um lado você tinha africanos vindos de um ponto distante do continente e que não se conheciam originalmente. Eles estavam num ambiente novo, tenso, de concentração, porque a cidade colonial era pequena, mas concentrava uma população densa. Os africanos traziam bagagens culturais diferentes, mas alguns elementos eram mais ou menos articuláveis, a língua, por exemplo. Acredito que também a dança foi importante, já que os povos se articularam nesse sentido. A capoeira, então, era uma forma de união desses diversos grupos. Agora, é importante colocar que o termo capoeira foi dado pela ordem policial. Eles eram identificados assim. Isso cria um problema, já que de certa forma você tem uma identificação grupal que não parte do grupo, mas sim do seu rival. P – E como eles chamavam a dança? R – Os termos da documentação são o “jogo do capoeira”. Agora, da dança é o seguinte: todos esses povos trazem uma bagagem cultural com diversas danças e artes marciais. Eu estive em Angola pesquisando em 1995 e, no Museu Etnográfico de Luanda, pude perceber que essas danças, por mais diferentes, tinham um ponto comum. Possivelmente essas semelhanças fossem articuladas na América. Quer dizer: capoeira, na minha hipótese, nasceu na América. Ela não nasceu na África. Ela foi formada com elementos africanos e articulada de forma inédita no território escravista. P – Como as nações étnicas se relacionavam com a capoeira? R – Eles criaram uma coisa nova em cima de elementos já tradicionais. Foram muitos os elementos. A capoeira nunca foi uma prática de um grupo ou nação determinada. Ela sempre foi um pólo de união de diversos grupos. É um espaço mais ou menos aberto. Você tem os grupos com diversas origens: os benguelas, os cabindas. Isso aponta que ela era um ponto de união de grupos diferenciados, e não uma coisa étnica, determinada. Ela foi transformada pelas interações africanas. P – Muitos estudiosos relacionavam a capoeira aos meios de resistência dos escravos no mundo rural. Como se originou essa teoria? R – No início do século 20, sobretudo na Semana de Arte Moderna, quando há uma tentativa de se resgatar a história do negro, não mais como inferior e perigoso, mas como pertencente à nacionalidade, nasce também o estereótipo da resistência. Isso era novo para a época. E nesse mito da resistência, o principal era o quilombo, numa visão até idílica. Tornou-se até mais idílica depois. Estudiosos estavam naquela época presos ao modelo da escravidão rural – que durou mais tempo e que, por isso, seria o modelo principal –, a escravidão agrária, da senzala, onde estava a maioria quando houve a Abolição. P – E a escravidão urbana? R – Estava um pouco esquecida. Aí colocaram a capoeira dentro desse modelo da escravidão rural, que plasmou mesmo a memória da Abolição, com a fazenda, a senzala, o cafezal e tudo o mais. Então se criou uma versão da história da capoeira no século 20 ligada ao quilombo, à história da resistência. Fora isso, o movimento negro pegou esses elementos também e os trabalhou meio que embolados. Durante muitos anos foi passada essa coisa de que a capoeira era não sei o quê do quilombo, que era uma espécie de panacéia para todos os elementos da cultura negra. As fontes de época, tanto na primeira como na segunda metade, são muito claras: a capoeira é urbana. Aliás, cheguei nela através da escravidão urbana. Quando comecei a pesquisar, antes mesmo de entrar no mestrado, meu objetivo era mostrar a escravidão urbana. Em geral, a nossa academia está muito presa a esse modelo do quilombo, da questão rural. E há poucos trabalhos sobre escravidão urbana. P – Nesse contexto, a capoeira passa também a ser um elemento de resistência? R – A capoeira é uma resposta de escravos urbanos a um novo ambiente. O quilombo é importante, mas não se misturava muito. Havia uma visão idílica de que o capoeira queria fugir para o quilombo, distante, nas montanhas. E ali que se criava um reino isolado. Os escravos do quilombo têm contato com os escravos da senzala; então, não é uma coisa isolada. Muito menos a fuga é uma coisa da liberdade, abstrata. O capoeira não é um escravo que vai fugir. Ele vive dentro do ambiente urbano e tem ganhos dentro desse ambiente. Existem casos, lógico, ligados à fuga, mas em geral isso é raro, porque, invariavelmente, é uma forma de luta adaptada a esse meio urbano. P – Como os capoeiras transitavam nesse meio urbano? R – A cidade colonial era repleta de becos, de vielas, de ruas estreitas, uma cidade congestionada. Uma cidade de pequenas fachadas e grandes quintais, com toda uma ordenação labiríntica. A capoeira é uma forma de luta adaptada a esse ambiente. O objetivo não é destruir o inimigo, mas sim possibilitar que ele fuja daquela cena em que foi agredido. É uma forma de defesa. P – De certa forma, eles se prevaleciam da topografia da cidade? R – Esse mundo urbano era um mundo violento. Sendo assim, era preciso dominar uma forma de luta para se manter nele. O escravo não era só atacado por policiais brancos, mas sim por outros escravos também. Para usufruir as regalias da cidade, ele precisava de uma forma de defesa. Quando um senhor colocava um escravo na rua – como artesão ou até para buscar água –, esse africano tinha que ser safo, tinha que se livrar, ser esperto, se não ele era roubado facilmente. E aí o senhor perdia mercadoria. O próprio senhor estimulava o escravo a se defender. A capoeira não era uma coisa contra o senhoriato. Era uma forma até de maximizar os lucros, já que o capoeira era um escravo que se defendia. P – Como se estabeleciam as relações entre polícia e senhores? R – Os senhores reclamavam das prisões porque, bem ou mal, os escravos geravam lucros. Havia fuga é lógico, mas dentro da cidade. Ele sabia que se chegasse na casa senhorial sem o pagamento, seria castigado. Ele fugia então para conseguir o dinheiro. Fugia também por causa de mulher, festa etc. Os escravos tinham muitas relações fora da escravidão. Eles tinham a figura do padrinho, em geral outro homem branco, que empenhava a palavra para o senhor em caso de fuga, intermediando a volta do escravo, conseguindo a garantia de que não seria castigado. Eles se relacionavam com libertos, com escravos, com ciganos, com todo o mundo. P – Como a classe dominante se relacionava com os capoeiras? R – O que havia era o triângulo da desordem. Os interesses do Estado eram uns; da elite proprietária, eram outros. A elite queria que os escravos trouxessem dinheiro para ela. O que eles fizessem na rua era outro problema, não interessava, a não ser que fosse muito grave. Já a elite do Estado tinha uma outra visão. Queria evitar que esse escravo na rua trouxesse confusão, criasse conflito, que desordenasse o ambiente urbano. Os interesses da elite do Estado não batiam com os interesses particulares. Havia um conflito, só resolvido em 1850, mais ou menos. A partir desse momento, o Estado toma pé da situação. Até a metade do século 19, era um conflito porque os próprios senhores iam à Justiça para garantir a impunidade dos seus escravos. Você tendo escravos presos, perde a renda. Era muito comum viver da renda dos escravos. Preso, o escravo não ficava apenas sem sua subsistência. Era um escravo que retirava também a subsistência senhorial. Havia muitos conflitos do Estado com os particulares. Era um jogo percebido pelos escravos. Nossos intelectuais não perceberam isso. Eles criaram um mito de que os senhores sempre se uniram contra os escravos. Não é verdade, eram interesses diferenciados. O policial não era um feitor. O feitor dependia diretamente da ordem do proprietário, ele trabalhava sob o controle estrito do proprietário. A polícia, não. Ela estava a serviço do Estado. P – Qual era, basicamente, a atividade econômica desses senhores? R – Muitos dos senhores eram comerciantes, alguns inclusive tinham cargos dentro do próprio Estado, como pequenos funcionários. Eram sinecuras, recebiam sem trabalhar. Eles tinham seus escravos como fonte de renda; era uma escravidão monetarizada, muito diferente da rural. O escravo urbano trabalhava com dinheiro, tinha o valor do dinheiro. Uma parte, ele entregava ao senhor e outra ele usava. Ele comprava, era consumidor. Havia uma idéia estúpida no século 20 de que a Inglaterra aboliu a escravidão para transformar o escravo em consumidor. É uma asneira. Ele era um consumidor em potencial. Ele estava dentro de uma sociedade mercantilizada, e percebia esse valor. P – Até que ponto essa nova ordem urbana contaminou o ambiente rural? R – Existe muita relação. No meu primeiro trabalho, desenvolvi uma idéia meio separada, de que a escravidão urbana e a rural eram mundos mais ou menos separados. Mais ou menos, porque na minha tese de mestrado uso material do meio rural como fuga. No doutorado, eu amplio essa relação, que é maior ainda. Agora, elas são muito diferenciadas. A lógica política do escravo rural não é a mesma do escravo urbano. Comunidade no meio rural era muito mais densa, numerosa. Essas comunidades nas senzalas eram numerosas e, apesar do contato entre si, em geral há muitos contatos internos, a maior parte das relações se tecia dentro da comunidade. P – Mas existia capoeira no meio rural? R – A informação que tenho da capoeira no mundo rural é de 1850/60. Como explico isso? A partir de 1850, com o fim do tráfico no Atlântico, muitos escravos urbanos são levados para o meio rural. Não é fluxo-refluxo. Eles saem da cidade para o meio rural. Esses africanos levam os valores do meio urbano para o meio rural. As informações que tenho, meio fragmentadas, são relativas a essa década de 60, daí em diante. Na década de 50, apesar das relações entre si, as lutas do meio rural e urbano tinham lógica e estratégias próprias. P – No meio urbano, as idéias circulavam mais? R – Você tinha uma cultura escrava urbana mais cosmopolita, que recebia influências de outros países. Você tinha marinheiros, jornais circulando. O escravo urbano estava mais aberto a influên-cias externas, a grupos intermediários. Ele conversava com viajantes, tinha uma rede de relações mais ampla, estava mais ligado ao panorama internacional da escravidão. P – Como o Estado via essa possibilidade de mudança? R – O Estado colonial chegou aqui com grande força no século 18, mas chega com mais força ainda no século 19, em 1808. Quer dizer, o Rio vira uma corte portuguesa. Com isso, você tem um aparato estatal militar muito grande, que deu uma segurança para que não houvesse uma rebelião. Impediu, até, uma grande rebelião no Rio como houve em Salvador. Mas, ao mesmo tempo, os interesses desse Estado não são os interesses dos particulares. Há um status quo, um modus vivendi entre escravos e senhores do século 18, que é um pouco perturbado por esse novo Estado. Ele quer evitar que o escravo possa sair à noite, jogar capoeira, uma série de atividades que os senhores autorizavam. É o chamado direito costumeiro, que tem uma margem: olha, eu quero que você faça isso como escravo, mas em compensação você vai ter uma série de regalias; você pode ter isso, jogar sua capoeira etc. Nisso, a capoeira entra como elemento desse modus vivendi. Havia uma complacência senhorial. Existia um acordo entre escravos urbanos e senhores no século 18. P – E o Estado interfere nesse processo? R – O Estado chega e atrapalha esse acordo. Cria um conflito entre três grupos: os escravos, os particulares e o Estado. A partir de 1840, por exemplo, você tem a chegada ao poder de Dom Pedro II, que gera uma expectativa de esperança e renovação. Há um certo investimento dos escravos sobre ele: é um cara novo, é um cara desligado das elites portuguesas, um brasileiro... Um investimento que dá frutos a partir de 1857, quando ele comuta todas as penas de morte de escravos e a prisão perpétua. Isso é lido como uma posição do imperador a favor dos escravos e contra os senhores; contra o próprio Estado, que criou a pena de morte. Então há uma leitura política. Os escravos lêem politicamente, não são incapazes de pensar. Até há uma estratégia de apoiar grupos menos conservadores. P – Em seu livro, o senhor relata casos de corrupção nas relações entre a polícia e os senhores/escravos. Isso era novo à época? R – Você mais ou menos tem um mundo urbano já monetarizado. Mas o Estado chegou tarde no Brasil colonial. A lógica das relações de poder sempre foi, no Brasil colonial, a lógica paternalista, de favor, do patriarcalismo, do apadrinhamento. Então tudo isso é coisa tradicional no Brasil, não é uma visão de cidadania. É uma relação muito pessoal. Isso é do meio rural e das raízes da nossa sociedade. Quando falamos hoje de Estado, parece uma coisa abstrata. Na época não era, o Estado era o rei, era propriedade do rei. Os escravos não são propriedade do Estado, mas do imperador. Tanto que tem até um caso no livro em que escravos do governo mandam um manifesto ao imperador reclamando contra maus-tratos no Arsenal de Marinha. Então o que eles vêem: que não são propriedade do Estado, mas sim do imperador. Quando eles foram maltratados, o imperador não sabia; então eles mandam um aviso. Na época não havia uma divisão, e a sociedade brasileira é tradicionalmente patrimonialista. A polícia, nesse cenário, é o novo. Não que não houvesse formas de controle social antes, mas a polícia é um corpo militar no meio urbano com uma função específica de controle na ordem da cidade. É um grupo profissional. O que havia antes eram soldados do exército, pessoas civis, que andavam armados nas ruas, mais ou menos exercendo a função de polícia. Só que é diferente de uma função que já nasceu como polícia, em 1809. É uma instituição nova chegando ao Brasil, mas desvinculada desses interesses particulares. Antigamente os particulares faziam sua segurança. P – Os historiadores divergem sobre a origem do termo capoeira. O que o senhor pesquisou a respeito? R – Passei quatro anos pesquisando. Fui a Angola e Portugal (um mês em cada). Utilizei fontes dos dois países, principalmente em Portugal, que foi mais fácil. Lá trabalhei no Arquivo Ultramarino de Lisboa e encontrei evidências de escravos portando facas, andando em grupos à noite, toda a descrição do capoeira, mas não o termo capoeira. O fenômeno capoeira foi muito anterior à palavra, que não é africana, mas luso-indígena. Possivelmente foi um vernáculo que não foi criado pelos africanos, mas pelos portugueses, a partir da experiência colonial. Para a cidade, ela está ligada mais ao cesto; tem o termo rural também. De certa forma, a polícia pegou esse termo, que tem origem no cesto de palha. P – A capoeira é hoje um esporte muito difundido e praticado no Brasil. Como o senhor vê esse fenômeno? R – A capoeira é uma marca da nacionalidade. Nasceu nos grandes centros – como Rio e Salvador – e se espalhou como símbolo de uma identidade. Nossa elite é muito aberta a influências estrangeiras. Nessa sociedade que é muito capilar, a capoeira serve como traço de identidade que está saindo e ganhando o mundo. Ela inverte o quadrante, cria uma espécie de auto-estima, afaga nosso ego. P – Como essa capoeira poderia ser classificada? R – Trata-se de uma capoeira esportivizada, transformada em apresentação. Não é mais luta marcial, mas arte marcial, transformada em ginástica. Ela sofreu muitas influências, mudou seus fins, mas manteve seus meios. Suas músicas, por exemplo, demonstram uma coisa do cotidiano, da forte presença católica, da afirmação. Manteve seu padrão social de baixa renda e uma certa identidade de cor, que foi um pouco alterada na segunda metade do século 19, mas que voltou no século 20. Ela é também uma espécie de canal com nosso passado; em geral, o Brasil é um país sem memória. Ela tem uma memória gestual, é uma coisa muito lúdica. Não é um campo muito intelectualizado, por mais que se fale sobre ela e ela seduza os intelectuais. Acabou se tornando um elo com nossa raiz escrava, crioula e africana. E um elemento de afirmação de identidades negra e nacional, que estão conjugadas, o que não é muito comum. P – O senhor vê alguma relação entre a repressão de hoje nas periferias das grandes cidades e aquela da qual os capoeiras eram vítimas? R – Você tem uma leitura de controle desse meio urbano que se assemelha. Por exemplo, os grupos de traficantes que dominam parte dos morros cariocas. Ao contrário do que muita gente fala, a favela não está ligada ao quilombo, como se pensa. Ela está ligada a uma leitura urbana, um recorte urbano que vem do século 19. Está ligada ao beco da viela; não tinha beco e viela no quilombo. A favela nasce quando os indivíduos são expulsos desse meio urbano por causa das reformas do século 20 e vão morar nas áreas que escaparam disso, que no caso são os morros. Mas eles trazem do meio urbano toda uma vivência. A favela de hoje repete cenários urbanos do século 19. Ela tem uma topografia e um desenho urbanístico que se aproximam muito mais da cidade colonial do que a gente pensa. Tem essa coisa labiríntica, da experiência comunitária, que vivia no subterrâneo, vivia escondida do mundo repressor. Os cenários mudaram, mas não muito. Nagôs podem ser Comando Vermelho, Terceiro Comando e por aí vai. Eles disputavam o domínio urbano, contra a polícia. Isso foi uma tradição que foi seguida, não surgiu agora. P – E no caso da resistência cultural? A periferia de São Paulo produz, por exemplo, manifestações populares que são reprimidas, como é o caso do movimento hip hop. Como o senhor vê isso? R – A sociedade brasileira se moderniza, mas a exclusão continua. A lei é igual para todos, mas na prática quem enche as cadeias são pessoas de origem pobre e de origem negra. A modernização não conseguiu superar as mazelas fundamentais dessa sociedade. Então, a exclusão utiliza um novo ambiente para se manifestar. O que acontece é que o campo da desigualdade é internacional. Nos EUA, também, teoricamente, todos são iguais... Mas não é assim. A maioria negra é excluída, sempre foi assim, e vai piorar com os republicanos. A coisa do nacionalismo para esses movimentos negros, como no passado, não interessa muito. Esse escravo africano não estava muito interessado em defender sua pátria, na medida em que a pátria o colocava de joelhos. No século 19, os escravos se relacionavam com os de outras regiões da América, por exemplo. Havia toda uma tendência, os interesses eram os mesmos, o discurso nacionalista não criava solução para nada, não dava possibilidade, era um discurso conservador. Em nível de América, de Hemisfério Ocidental, você tem mesmo uma questão de exclusão racial e social mais ou menos coligada. O hip hop é um pouco aquilo: se incomoda meu opressor, deve ser bom para mim também. É uma espécie de aliança tácita nesse sentido. A coisa é criada um pouco nos opostos. Quer dizer: do que nossa elite branca gosta? Ela gosta de música suave, do erudito, então você carrega nos opostos. É uma manifestação de classe, de afirmação racial, é um jogo de espelhos: se você me oprime, a minha identidade não pode ser igual a sua. A democracia até facilita isso. Esses grupos urbanos estão querendo uma identidade própria, mas eles não têm acesso à identidade ancestral, a não ser a religião. O jovem é um pouco deslocado, inclusive na religião, que é muito hierárquica. Nesse cenário, o campo internacional se torna o campo da identidade. Como resposta a essa pressão, eles traçam uma identidade reacional. Tem um sentido político em relação a isso. A tendência é ele se aprofundar cada vez mais, buscar suas contradições. P – Com isso, a repressão é perpetuada... R – O que você tem é a modernização conservadora, o que não significa uma mudança fundamental das condições de vida. O que acontece é que essa energia dos jovens, essa coisa da busca de afirmação, bate de frente com essa coisa da polícia já ter nascido com objetivo racial. Quando a polícia nasceu, ela já tinha isso no estatuto: controlar a massa escrava. A polícia não foi criada no Brasil para o bem-estar público, mas sim para garantir os interesses do Estado. O regime militar piorou ainda mais isso. A polícia está aí para garantir a ordem, não a manutenção da segurança. Ela está mudando lentamente por causa da democracia. As comunidades pobres são vistas como potenciais perigosas. E o jovem é visto como o mais perigoso de todos. Ele é o cliente primário da ordem policial. disponível em : http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/out2001/unihoje_ju167pag22.html fonte: Jornal da Unicamp

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